In "A perna esquerda de Paris seguido de Roland Barthes e Robert Musil" por Gonçalo M. Tavares
A geometria era como desenhar (com outra forma) números - números com volume - e os números eram desenhos de nada.
A minha irmã deu-me um livro. Abri-o e fascinou-me tanto como me irritou. Irritou porque estava excelentemente escrito por um vivo mais ou menos da minha idade e isso despertou-me inveja. Mas também me irritou porque eram sobretudo jogos de palavras. Brilhantes, mas jogos de palavras. E eu sei que por detrás de jogos de palavras aparentemente lúdicos ou puramente eruditos se podem esconder as mais manhosas filosofias de "vida". A minha irritação dissipou-se e passou a admiração mais pura e a um interesse desinteressado, quando li o capitulo 19.
A realidade desaparece no momento em que um pressentimento avança [...] sente-se aí que a realidade é uma coisa suja, que os líquidos mais puros podem ter tubarões, um copo de água pode ter um tubarão. Não deves prever tudo até ao último dia. A surpresa é um direito dos vivos. Há lobos suaves, conheces animais hipócritas que tem um pêlo suave. A indústria entra pela tua cadeira privada e a fábrica inteira está debaixo da tua cadeira privada. É a industria que produz o rídiculo, nunca te esqueças. Tornas-te um homem sozinho porque as coisas industriais passeiam por todo o lado. A ternura dos lobos é uma estratégia. O Mundo avança atrás de um coxo. A cidade avança atrás de um coxo. Os homens passeiam impacientemente em redor do ferreiro que faz a lamina para o seu suicídio. [...] Os olhos estão ocupados a ser vistos. Ninguém selecciona, num catálogo, as cidades para o exército invadir. Uma família não tem influência nas alterações de fronteiras entre países. O país existe sem a opinião das famílias, avança como se tivesse pernas. Não há dinheiro público: o que é isso de dinheiro colectivo?
A realidade é uma coisa suja e desaparece no momento em que um pressentimento avança. Preciso, exacto, correcto. Ele não fazia jogos de palavras nos primeiros capítulos: introduzia um estilo discursivo, abria um campo linguístico.
Não invejamos aquilo que é bom. Invejamos o que não presta e se anuncia como óptimo. A inveja não existe: é desconfiança e irritação com aquilo que mata e apodrece quando anuncia dar vida eterna.
Existem livros de normas. E certos poemas, quando lidos ao contrário, podem revelar-se como excelentes indicações para a construção de máquinas.
In "A perna esquerda de Paris seguido de Roland Barthes e Robert Musil" por Gonçalo M. Tavares
Não invejamos aquilo que é bom. Invejamos o que não presta e se anuncia como óptimo. A inveja não existe: é desconfiança e irritação com aquilo que mata e apodrece quando anuncia dar vida eterna.
Existem livros de normas. E certos poemas, quando lidos ao contrário, podem revelar-se como excelentes indicações para a construção de máquinas.
In "A perna esquerda de Paris seguido de Roland Barthes e Robert Musil" por Gonçalo M. Tavares